segunda-feira, 30 de abril de 2007

Escritoras Suicidas: Atualizado

Por volta das três...

A esta hora o sono me foge. Sempre às três. Como se fosse um castigo, uma praga jogada por ele. A esta hora o cheiro dele me atormenta: sobe pelas minhas pernas e bole com as minhas partes. O cheiro dele tem mãos.
...E língua.
Era um lugar ordinário, mas estava invariavelmente aberto quando me esgueirava pelas ruas de madrugada. Não me importava de caminhar sozinha àquela hora ou de entrar em um bar cheio de homens.
Incomodava-me não encontrar nada em minha cama.
...Às três da manhã.
Naquela primeira noite ele não me tocou. Ordenou que eu não falasse e, então, farejou o ar. E meu corpo, dos pés à cabeça.
...Feito um cão.
Foi lá, naquele lugar, que o vi. Ele se sentou ao meu lado, bem junto, e pediu lhe fosse servida a bebida. Aquela, disse ele. E bebeu mais de uma dose. Sua perna pressionava a minha, enquanto sua mão direita fazia um círculo sobre o balcão.
Senti-me perversamente disposta.
Ele notou.
...E me seguiu.
Não sei onde foi parar minha vergonha naquela segunda noite, tampouco meu juízo e minhas roupas. Não sei em que momento ele começou a se despir.
Estávamos desesperados.
Deixei-me comer.
...E comi.
Naquele bar havia um lacre. E, em volta, um silêncio de morte. Mudei de calçada e segui sem olhar pra trás.
Joguei no lixo os jornais do dia seguinte.
...E a minha curiosidade, também.
Não o esperei naquela que seria a terceira noite. A certeza de sua ausência era tão grande quanto a minha vontade de perambular novamente.
Mais uma vez saí. Caminhei pelas ruas esperando escutar a música dos gatos.
Nunca havia me sentido tão só. O desejo nunca havia sido tão agônico quanto naquela terceira noite.
...Corri, com medo de mim.
O bar continua lacrado, mas a notícia do crime já se espalhou pelos quatro cantos do beco. Dois homens, disseram, por conta de uma dívida.
Não sei quem morreu. Ou matou. Continuo ignorando os jornais.
O lixo tem sido a salvaguarda das incertezas. E de minha vida.
Esta noite é minha, ainda que o cheiro dele esteja presente. E mais forte. Ainda que ele se enfie entre as minhas pernas. E me molhe. Ainda que não venha. Ainda que, vivo ou morto, não o saiba.
Ainda assim:
esta noite, a quarta, é minha.
("de tudo ao meu amor serei atento".
E que seja, por amor a Deus.
...Às três da manhã.)

por mariza lourenço, a verdadeira musa e namorada do Kane.

escritora e editora do ES. advogada criminalista e consultora conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de sua cidade-SP, onde vive. É feminista e mãe. E acredita que, um dia, ainda escreverá um poema decente. Faz arte na Germina — Revista de Literatura e Arte, nas Escritoras Suicidas e na Arte Benta, que é sua. Escreve um blogue aqui.

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Escritoras Suicidas, um site de mulheres e homens que fingem de, traz, em sua 15ª edição, o tema Fuga.

Além das escritoras fixas, esta edição conta com a presença das autoras Abigail Simmons, Izabela Leal, Pierina Pier e Renata Amador.

vale a pena conferir!

escritoras:
adelaide do julinho/ adriana oliveira/ ana de celorico/ andréa del fuego/ antonia pellegrino/ bruna beber/ dominique lotte/ eugênia fernandes/ florbela de itamambuca/ jane sprenger bodnar/ jussara salazar/ marília kubota/ mariza lourenço/ roberta silva/ ro druhens/ romina conti/ samantha silva/ santamaria/ silvana guimarães/ silvia devereaux/ tereza yamashita/ valéria tarelho /verônica couto/ virgínia vieira/ virna teixeira.

editoras:
florbela de Itamambuca/ marília kubota/ mariza lourenço/ silvana guimarães/

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Contato com Citizen Kane E-mail: sociedadebbb@bol.com.br
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